quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

"NUA , Senhor agente!"



"A corrida da Feira do Livro à esquadra deixara-o esbaforido. De coração aos pulos, as palavras embrulhavam-se na língua. Mas a revolta era tanta que repetia sem cessar: "Uma mulher nua, senhor agente!". "Como Deus a trouxe ao mundo?", interrogava o oficial de serviço, sem perceber de onde vinha tamanha agitação. "Sim, mas mais velha. Os putos andam num alvoroço! Alguém tem de pôr mão nisto..."
O agente só precisou de persuasão - e, vá lá, de um copo de água - para arrefecer a fervura. E logo percebeu que a denúncia tinha fundamento, olá se tinha! Alguém plantara na capa de um livro uma floresta de pelos púbicos, aconchegada num par de coxas proeminentes. O suficiente para a miudagem entrar em êxtase. "Um dos garotos até perguntou ao pai se aquela não era a imagem que vira num site manhoso da Net, antes de ele barrar o acesso", assegurava o queixoso, mal refeito do choque. "E ele?". "Nem ouviu o filho...". Por essa altura, já estava a tirar satisfações com o tipo do stande.
Quando o agente chegou, deu de caras com um tumulto em desenvolvimento. Até os velhinhos do lar da esquina se atropelavam uns aos outros, a ver quem primeiro botava o olhar nas vergonhas da senhora, expostas à vista de quem passava.
Faltava a arma do crime. Ou as armas. O livreiro, que no meio da confusão conservara cinco, nem tempo teve para esboçar a defesa. "Pornografia, claro! Razão tinha o cidadão queixoso". De nada valeram os protestos. "Leia bem. O livro chama-se 'Pornocracia', mas não é da Cicciolina. É uma obra de uma francesa. E isso é a reprodução de uma pintura do século XIX, 'A origem do mundo'. Até está num museu de Paris".
O auto foi lavrado em três tempos, a partir de um punhado de notas soltas:
- A cidade de Braga esteve na iminência de um levantamento popular (aqui, corrija-se para "alteração de ordem pública", rabiscou o agente);
- Foi ofendida a moral e os bons costumes (é melhor eliminar esta referência; parece coisa do Salazar);
- O segundo comandante propõe: "risco de cometimento de outros crimes" (prosseguir investigações).
Graças a sofisticadas peritagens, a múltiplos testes e à recolha da opinião de especialistas estrangeiros chegou-se a uma conclusão. "Telefona à Direcção Nacional. Que escondam o auto no arquivo morto", ordenou o comandante. "Isto é que é eficácia. Descobrimos em tempo recorde que a capa do livro reproduz um quadro de 1866. Na época, os agentes não eram tão zelosos como nós. É uma obra de arte, não é uma reles fotografia da revista 'Gina'. Mas continuem atentos. Bom agente é o que tem olho vivo".
Ficção, da mais pura. Portugal, em Fevereiro de 1959. Perdão: de 2009."

In Jornal de Notícias , de PAulo MArtins

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom artigo!
A saloice nacional não tem limites, de facto. Soma-se um(a) queixoso(a) imbecil a um(a) juiz(a) mentecapto(a)e temos o bom senso deitado pela janela fora.
E já agora porque não um auto ao tal museu de Paris (certamente um antro de pornografia)?
Relembro, que já o ministro Cravinho (ao bom estilo PS) proibiu as linhas eróticas, o que lhe valeu o cognome de Tiralinhas!
Para quando um Decreto-Lei que proíba a Internet? Isso sim, é que verdadeiramente combater pela moralidade!
jst
jst

Anónimo disse...

Pois eu sou a favor de tudo o que dizes com tom irónico. Tenho dito!